Há mais de dois mil anos, dois gregos tentaram explicar a natureza das coisas de formas opostas. Parmênides sustentava que apenas o ser existe, e que o não-ser é impensável. Pra ele, se algo “não é”, não pode ser sequer cogitado, porque isso significaria dar existência ao que, por definição, não existe. Entendia o ser como imutável.
Heráclito enxergava o contrário: tudo está sempre mudando. Ele usou uma metáfora hoje famosa para explicar isso. É aquela história de que ninguém entra duas vezes no mesmo rio, porque nem o rio nem a pessoa são os mesmos.
A escrita, pra mim, existe exatamente entre essas duas ideias: é o desejo de fixar algo no mundo, de mãos dadas com a suspeita de que tudo escapa.
Em Por que não escrevo, Débora Vázquez transforma essa hesitação em ensaio, reunindo justificativas que oscilam entre o prosaico e o existencial. Publicado na última edição da piauí, o texto pode ser lido como uma paródia dos discursos que romantizam a escrita, mas também como um testemunho das fricções que ela provoca.
Me identifiquei bastante e até destaquei uns trechos abaixo. Acho que a escrita se move exatamente nessa tensão entre o que se quer dizer e o que resiste à forma.
Vale a leitura.
Por que não escrevo, de Débora Vázquez
Porque não tenho um quarto só para mim. Porque, quando escrevo à mão, me custa entender minha própria letra. Porque ler é mais prático, quando a tipografia não é miúda demais. Porque prefiro me manter à distância de mim mesma e ver filmes no cinema. Porque minha caligrafia me dá desânimo. Se tivesse letra bonita, teria ideias melhores. Tenho inveja de quem coleciona cadernos caprichados, com desenhos. Porque odeio pensar que alguém possa estar lendo por cima do meu ombro. Não gosto que espiem meus defeitos, muito menos que os surpreendam. Para que ninguém tente me compreender e tenha compaixão de mim. Porque, se escrever os livros que levo dentro de mim, talvez perca peso e saia voando. Porque não quero ter que inventar profissões falsas cada vez que no café da esquina me perguntam se sou escritora já que faço anotações.
Porque gosto dos cadernos em formato paisagem como as fotografias em preto e branco de Jacques-Henri Lartigue, e são difíceis de encontrar. Porque a tinta mancha os dedos e eu prefiro reservar o sabão branco para tirar as manchas das roupas. Porque há gente demais que escreveu antes e que está escrevendo agora. Por cortesia, para não ocupar lugar nas estantes alheias. Para que ninguém saiba que escrevo. Para nunca cometer um erro de ortografia. Porque não quero que, no futuro, meus livros juntem pó. Porque não estou de viagem. Porque fiz uma promessa e faço o sinal da cruz diante de todas as igrejas. Porque tenho que bater claras em ponto de neve para não sentir frio. Para que não me estudem e tirem falsas conclusões e para não ser lida por potenciais inimigos.
Porque não estou nem doente nem com saúde. Porque tenho medo de começar a sonhar com frases próprias e esquecer os poemas que aprendi quando era menina. Porque não me dá vontade. Para mentir menos. Pela mesma razão que me faz não desenhar. Porque tenho frio nos pés. Porque, em algum momento, fomos peixes. Porque tenho roupa para pendurar e depois tirar. Porque não me pagam. Porque não quero que me paguem. Porque não quero criar um calo no lado esquerdo do dedo médio da mão direita. Para não ter que usar óculos. Porque rezo à noite com as mãos entrelaçadas. Porque talvez, um dia, eu vire borboleta. Para poder içar a bandeira de um navio pirata. Porque às vezes, quando nem presto atenção, eu vivo.
Para não me afogar no mar enquanto nado crawl por culpa de uma cãibra no braço. Para não virar amiga íntima da poesia. Para que não me achem louca. Para não envelhecer sentada. Para que não me maldigam em diversos idiomas. Para não me distanciar da banalidade. Para me distanciar da vaidade. Para poder esmagar mosquitos com um aplauso seco quando zumbem perto da orelha. Para o caso em que tenha que cobrir a boca com as duas mãos enquanto bocejo. Porque não gosto de varar a noite se não estou em Sevilha. Porque detesto os finais, inclusive os felizes. Porque prefiro os princípios e as listas inacabadas.
Porque talvez um dia venha a ser pianista e quero que meus dedos fiquem do mesmo tamanho. Porque tenho urgência de espremer laranjas toda manhã. Porque prefiro escovar os cabelos e sair bem penteada nas fotos. Porque ainda é muito cedo ou já é tarde demais, e às cinco tomo chá com scones como a rainha da Inglaterra. Porque se tropeçar com um lápis na mão posso acabar cravando-o no coração ou caindo com ele num poço seco. Para ir na contramão de todos os escritores que explicam por que escrevem. Porque já o fiz em outra vida e foi uma perda de tempo.
Porque não quero que me leiam como se estivessem lendo a palma da minha mão. Porque prefiro jogar dados, baralho, pingue-pongue e tênis, para depois me abanar com um leque. Porque as palavras, quando se juntam, podem produzir música ou ruído, e tenho respeito pelo silêncio. Porque prefiro ler o que acontece comigo nas páginas dos outros. Sempre dão detalhes mais precisos. Porque não quero que, entre as frases, se imiscuam fantasmas sabichões. Porque preciso tapar a Lua com uma das mãos para ver melhor as estrelas. Porque talvez o tempo se inverta e eu precise das duas mãos para tornar a engatinhar.
Para não correr o risco de me viciar em café como Balzac e depois terminarem exibindo minha cafeteira em um museu. Porque me dá pontadas nas costas. Porque é preciso levar os velhos pelo braço e as crianças pela mão. Porque penso melhor quando caminho. Porque não tenho tinta invisível e não quero comprometer ninguém. Porque prefiro a tradição oral e a língua dos sinais. Porque não poderia tornar a roçar a cortiça de uma árvore sem me sentir uma traidora. Porque não quero ter que posar para a foto da capa com o queixo apoiado em uma das mãos. Porque não quero deixar de me perguntar por que não escrevo.
*Tradução de Samuel Titan Jr.
Não à toda esse trecho me parece, ao mesmo tempo, reconfortante e dilacerante.
Belo texto. Obrigada por compartilhar.